sexta-feira, 4 de novembro de 2011

DESENVOLVIMENTO COGNITIVO EM VYGOTSKY: “ENTRE OS IDEAIS DA MATEMÁTICA E A HARMONIA DA IMAGINAÇÃO”

DESENVOLVIMENTO COGNITIVO EM VYGOTSKY: “ENTRE OS IDEAIS DA MATEMÁTICA E A HARMONIA DA IMAGINAÇÃO”

Disponível: www.unimep.br/~mncruz/desenvolvimento-cognitivo-28-anped.pdf

Cruz, Maria Nazaré da – UNIMEP
GT: Psicologia da Educação / n.20
Agência Financiadora: Não contou com financiamento
Introdução
 
Na perspectiva da psicologia histórico-cultural de Vygotsky, o conhecimento do mundo é sempre mediado pelas práticas culturais, pelo outro e, especialmente, pela linguagem. Pela palavra, na relação com o outro, referimo-nos ao mundo, classificando, recortando, agrupando, representando, significando, enfim, o real. São, assim, múltiplas as funções da linguagem e os modos de seu funcionamento. Contudo, quando analisamos os textos vygotskianos (VYGOTSKY, 1987b, 1989, 1994) sobre a elaboração conceitual da criança e do adolescente, evidencia-se a ênfase nos aspectos lógico-conceituais desse processo e nos modos pelos quais os sujeitos avançam em direção à capacidade de abstração, em sua relação com o outro e com as palavras.

Neste ensaio, partimos da problematização desta ênfase e da visão teleológica do desenvolvimento cognitivo, aí implicada, cujo ponto de chegada seria o raciocínio lógico-abstrato. Tal problematização será feita no interior mesmo das concepções de Vygotsky, que construiu, através de sua obra, a possibilidade de compreensão do desenvolvimento humano como algo que se faz na relação concreta entre os homens e com a cultura e que, portanto, implica variabilidade, descontinuidades, oscilações. Terá como um de seus pontos de referência a argumentação desenvolvida por Wertsch (1995) sobre a existência, na obra vygotskiana, de marcas de uma racionalidade iluminista e de uma ambivalência, entre um funcionamento semiótico descontextualizado e outro contextualizado, em relação ao telos do desenvolvimento.

Tomaremos, como eixo central desta discussão, as concepções de Vygotsky - iluminadas pelas contribuições de Bakhtin – sobre a significação como processo, como produção de sentidos contextualizada historicamente, que se faz num “equilíbrio dinâmico entre os ideais da matemática e a harmonia da imaginação” (VYGOTSKY, 1987b, p. 253), encaminhando nossas reflexões em direção a uma melhor compreensão da tensão entre pensamento lógico-conceitual e imaginação. Procuraremos, assim, argumentar que é possível atribuir à imaginação uma força explicativa dos processos de conhecimento do mundo pela criança, desenvolvendo um modo de interpretar as relações que se estabelecem entre imaginação, linguagem e racionalidade abstrata que, segundo nos parece, têm importantes decorrências para a compreensão do desenvolvimento cognitivo, numa perspectiva histórico-cultural.


O processo de elaboração conceitual e a mediação pela palavra: estabilidade e transformação.


Em suas análises do processo de elaboração conceitual, Vygotsky destaca os diferentes tipos de organização lógica dos objetos que subjazem ao significado da palavra, valorizando as abstrações, análises e generalizações que a criança é capaz de articular, conduzida pela palavra, nos distintos momentos de seu desenvolvimento intelectual. Em sua perspectiva, o significado da palavra modifica-se durante o desenvolvimento da criança, modificando os modos pelos quais a realidade é refletida e categorizada pela palavra, bem como os níveis de generalização nele implicados. Assim, a palavra reflete e generaliza a realidade e o significado é concebido como uma unidade de generalização e interação social (VYGOTSKY, 1987).

Esta concepção parece implicar que, no processo de interação verbal, o mundo da experiência é recortado/categorizado de acordo com as significações que aí se produzem. O significado da palavra, enquanto unidade de generalização e interação social, pode ser tomado como o elemento que articula a realidade em categorias culturalmente elaboradas. No decorrer da história social, formas de percepção e de organização dos elementos do mundo físico e social foram elaboradas pelos diferentes grupos sociais, codificadas nos sistemas lingüísticos e difundidas socialmente e, como afirma Fontana (1996, p.13), “passaram a fazer parte do conjunto de funções psicológicas do homem, constituindo meios objetivos para a abstração e generalização”.

Para Vygotsky, os processos que conduzem à elaboração conceitual são, portanto, sempre mediados pela palavra e, conquanto iniciem precocemente na infância, o que encontraremos então são apenas “formações intelectuais que realizam funções semelhantes àquelas dos conceitos verdadeiros” (VYGOTSKY, 1989, p.50). Na elaboração conceitual, a palavra é, primeiro, mediadora do processo, para depois se tornar símbolo do conceito. A criança explora o real, o material sensorial, e opera intelectualmente sobre ele, orientada pela palavra em funcionamento nas interlocuções.

Por implicar a articulação de processos complexos, como a abstração e a generalização, a elaboração conceitual desenvolve-se, na infância, através do que Vygotsky (1987b, 1989) nomeou pensamento por complexos e conceitos potenciais. A principal função dos complexos é estabelecer elos e relações, é unificar, reunir, agrupar. Já a dos conceitos potenciais é isolar, abstrair. Assim, enquanto no pensamento por complexos o traço abstraído do conjunto dos elementos é instável e seu predomínio é sempre temporário, nos conceitos potenciais o traço abstraído não se perde facilmente entre outros, uma vez que “a totalidade concreta dos traços foi destruída pela sua abstração” (VYGOTSKY, 1989, p. 68). Deste modo, só há conceito quando os traços abstraídos são novamente sintetizados e, nesse processo, a palavra tem o papel fundamental de dirigir os processos mentais envolvidos.

A ênfase colocada em processos lógicos de abstração e de generalização, na explicação da formação de conceitos permite entrever, em Vygotsky, uma posição que Wertsch (1995) identifica como racionalista, bem como a postulação de uma direcionalidade intrínseca ao processo de desenvolvimento cognitivo, cujo telos seria a racionalidade abstrata. Considerando, como ponto de partida de sua argumentação, que em Vygotsky os conceitos abstratos são vistos como emergindo em um ponto adiantado do desenvolvimento histórico e individual, Wertsch entende ainda que a racionalidade dessas formulações relaciona-se à concepção de que um potencial semiótico para a descontextualização predominaria no processo de elaboração conceitual.


A noção de contexto

Em sua concepção (WERTSCH, 1985a, 1995), é possível identificar nos escritos de Vygotsky dois potenciais semióticos na organização da linguagem humana. A linguagem pode ser usada na reflexão abstrata, como indicariam as análises vygotskianas sobre o desenvolvimento dos conceitos e do raciocínio científico, nas quais ele teria focalizado processos de descontextualização do significado. Mas há também modos de funcionamento da linguagem radicados na contextualização, implicados nas concepções de Vygotsky sobre a função indicativa da fala, bem como sobre a fala interna e a noção de sentido.

A compreensão de Wertsch (1985a) sobre a idéia de contexto pode referir-se – como ele próprio destaca - tanto a um contexto lingüístico quanto extralingüístico. Este último pode ser explicado como o conjunto de objetos, ações e todos os eventos não lingüísticos co-presentes espaço-temporalmente com a palavra. Já o primeiro, é o contexto fornecido pela própria linguagem. Para Wertsch (op.cit.), a utilização que Vygotsky faz da noção de contexto é geralmente referida ao contexto lingüístico imediato da palavra. Os conceitos seriam, assim, um modo descontextualizado de funcionamento da linguagem, porque implicariam relações signo-signo que permanecem estáveis entre contextos.

Contudo, podemos problematizar esta idéia considerando que, se o contexto lingüístico pode ser definido como aquele fornecido pela própria linguagem, a concepção mesma da existência de relações signo-signo implicaria a noção de contexto. Além disso, a generalização – aspecto central do pensamento conceitual – é explicada por Vygotsky (1996, p. 189) como “a desconexão das estruturas tangíveis e a conexão nas do pensamento, nas do sentido”, o que nos faz inferir que o traço fundamental do conceito é a independência do contexto espaço-temporal e situacional, mas não do contexto lingüístico.

Assim, a descontextualização aludida por Wertsch (1985a, 1995), no caso dos conceitos, reduz-se à estabilidade, à constância das relações signo-signo. Porém, se considerarmos que, para Vygotsky (1987b, 1989), os conceitos e os significados das palavras – como formações históricas que são – estão em constante transformação, é preciso, ao menos, relativizar essas imagens de estabilidade e de constância.

Além disso, a noção vygotskiana de contexto parece poder ser ampliada pela incorporação das contribuições de Bakhtin a este respeito, como destaca Wertsch (1985b), já que alguns comentários de Vygotsky sugerem uma compreensão implícita de que o conjunto de textos que constitui a estrutura simbólica de uma cultura pode constituir o contexto mais geral de um enunciado e contribuir na determinação do sentido. Para Bakhtin (1990), a idéia de contexto implica a perspectiva dos interlocutores, o contexto ideológico e discursivo, e não apenas o situacional, concreto, relativo ao momento da interlocução. A noção bakhtiniana de contexto incorpora, então, o conjunto de opiniões, pontos de vista e julgamentos de valores.

Em nosso ponto de vista, esta noção de contexto está implicada diretamente nas concepções de Vygotsky e de Bakthin sobre a significação. Como já observamos, para Vygotsky, os significados das palavras são produtos da evolução histórica da linguagem e, como tal, não são necessariamente acabados e imutáveis. Ao contrário:


O significado da palavra é inconstante. Ele modifica-se durante o desenvolvimento da criança e com os diferentes modos de funcionamento do pensamento. Ele não é uma forma estática, mas dinâmica (Vygotsky, 1987b, p. 249).


Assim, não é só o conteúdo da palavra que se modifica com a evolução histórica do significado, mas o próprio modo como a realidade é refletida e generalizada na palavra. Como a generalização “torna-se possível somente com a interação social”, as transformações no significado da palavra devem relacionar-se ao contexto das dinâmicas interativas, de interlocução.


Em direção à “harmonia da imaginação”: processos de significação e elaboração de conhecimento.


Alguns autores têm assinalado, na interlocução de Vygotsky com teóricos como Bakhthin e Moscovici, a dimensão ideológica da elaboração conceitual (Fontana, 1996; Lisita, 1999), ultrapassando assim os limites da lógica racional-abstrata. Nessa dimensão, de nosso ponto de vista, está implicada a concepção sobre significação que, ao colocar em jogo processos que não podem ser reduzidos à racionalidade e à lógica e que não seguem necessariamente uma progressão linear, abre caminhos mais amplos do que aqueles apontados por Vygotsky em suas análises da elaboração conceitual.

A significação, em sua perspectiva, não se esgota no significado da palavra. Ele estabelece uma distinção entre sentido e significado que é fundamental para compreendermos sua visão da significação. O sentido é concebido como uma formação fluida e dinâmica, com várias zonas de estabilidade, que sempre se modifica, em função do contexto, enquanto o significado é a mais estável e precisa dessas zonas, permanecendo relativamente constante nas mudanças de sentido da palavra. Assim, o significado não passa de um potencial que só se realiza na concretude das situações de fala.

Para Wertsch (1995), é esta tensão entre sentido e significado que abaliza a compreensão de um outro (possível) telos para o desenvolvimento - a harmonia da imaginação. Ele baseia-se nas palavras de Vygotsky:


Apenas na matemática nós encontramos uma completa eliminação das incongruências, no uso de expressões corretas, comuns e inquestionáveis. Parece que foi Descartes quem primeiro viu na matemática uma forma de pensamento que tem suas origens na linguagem, mas que, não obstante, a superou. Nós podemos dizer apenas uma coisa: em sua oscilação e na incongruência entre o gramatical e o psicológico, nossa linguagem, em nossas conversações normais, encontra-se em um estado de equilíbrio dinâmico entre os ideais da matemática e a harmonia da imaginação. Ela está em um estado de movimento contínuo que nós chamamos evolução (VYGOTSKY, 1987b, pp. 252-253, tradução nossa).


Ainda segundo Wertsch (1995), ao apontar esta tensão, Vygotsky inclui outras formas de organização semiótica, em sua compreensão sobre o funcionamento da linguagem, como a que aparece em suas concepções sobre a reação estética, em Psicologia da Arte, e, especialmente, no último capítulo de Pensamento e Linguagem, em que o termo “pensamento” aparece relacionado a formas e significados maximamente abreviados e contextualizados, enquanto a idéia de “palavra” parece vincular-se ao potencial da linguagem para significados e formas maximamente explícitos, expandidos, sistêmicos e descontextualizados.

Esta oposição envolve as distinções, que Vygotsky (1987b, 1989) estabelece no decorrer do referido capítulo, entre fala interna e externa, entre aspectos fonéticos e semânticos da fala, entre categorias gramaticais e categorias psicológicas de sujeito e predicado, entre significado e sentido. A linguagem, a fala social/externa, a escrita, os aspectos fonéticos da fala, as categorias gramaticais e o significado correspondem a formas expandidas, explícitas, sistematicamente organizadas. Já o pensamento, a fala interna, os aspectos semânticos da fala, as categorias psicológicas e o sentido constituem-se em formas implícitas, condensadas, abreviadas. Assim, a possibilidade de compreender a “harmonia da imaginação” como telos do desenvolvimento do pensamento é justificada por Wertsch, pelo fato de Vygotsky referir-se às formas implícitas, abreviadas, internas e privadas da fala, como formas altamente desenvolvidas de funcionamento mental humano, como formas que se desenvolvem a partir da fala externa e social.

Fica claro, então, a que Wertsch se refere quando afirma a existência de uma ambivalência na compreensão de Vygotsky sobre o telos do desenvolvimento, já que num momento, as formas contextualizadas de funcionamento semiótico são tomadas como mais desenvolvidas e, em outro, assume-se que o desenvolvimento avançaria em direção a uma progressiva descontextualização dos significados.

No entanto, se partirmos de que a “harmonia da imaginação” é estabelecida em processos semióticos privados, como deixam entrever as concepções de Vygotsky (1987b, 1989) sobre a fala interna, talvez possamos redimensionar essas questões. Inicialmente, é interessante notar que na sua recorrência a obras literárias e textos dramáticos, para explicar as características da fala interna, como a abreviação, a condensação e a predicação, Vygotsky (op. cit.) se reporta, na maioria das vezes, a situações que envolvem pelo menos dois interlocutores, comparando fala interna e externa. Contudo é preciso reconhecer que, em seu discurso, estas questões não se reduzem a meras comparações. Assume-se, na verdade, que o potencial para a formação de todas as características da fala interna – formas implícitas, condensadas, abreviadas, altamente contextualizadas – já estão presentes na fala externa, sustentando a hipótese de sua origem social (VYGOTSKY, 1987b).

Assim, sua visão da articulação entre sentido e significado, embora não esteja bem explicitada em seus textos, dando margem a compreendê-la como ambivalência/ambigüidade, pode ser aproximada (e ampliada por ela) à concepção de Bakhtin, segundo a qual, a significação envolve sempre a relação entre a polissemia e a unicidade da palavra. A produção de significação é compreendida por Bakhtin como um movimento de articulação entre as condições concretas de interlocução e os significados, enquanto formas lingüísticas culturalmente estabilizadas.

Para ele (BAKHTIN, 1990), os elementos reiteráveis e idênticos entre enunciações – que ele denomina significação, em oposição ao tema da enunciação - são elementos abstratos, fundados sobre uma convenção e que não têm existência concreta independente; são formas lingüísticas que entram, como parte indispensável, na composição das enunciações e na realização do tema. Este último – enquanto sentido da enunciação completa – não se realiza sem a significação, da mesma forma que essa não tem existência concreta fora da enunciação e de seu tema. Nesta medida, é impossível traçar uma fronteira absoluta entre o que é reiterável e abstrato e aquilo que se produz nas condições concretas da interlocução.

Parece-nos, portanto, que é impossível delimitar de forma absoluta aquilo que Wertsch considera os potenciais semióticos para contextualização e descontextualização. Além disso, no caso da elaboração conceitual, é preciso lembrar que Vygotsky (1989) afirmou que, da mesma maneira que a criança não inventa o significado das palavras, ela também não tem um acesso direto aos seus significados convencionais: é apenas no contexto das interlocuções com outros membros de seu grupo cultural que as significações das palavras se produzem.

Além disso, podemos afirmar que uma das preocupações centrais de Vygotsky, ao discutir a formação de conceitos, é com o papel mediador do outro e da palavra. O conceito tem, portanto, uma origem social e seu desenvolvimento também se faz primeiro na relação com os outros e, depois, na própria criança. Primeiro, a criança é guiada pela palavra do outro, depois ela própria utiliza as palavras para orientar o seu pensamento. Como ressalta Fontana (1996), não é possível, numa perspectiva vygotskiana, pensarmos a atividade mental desvinculada das condições reais de interlocução, que são determinadas pelo contexto histórico-cultural mais amplo.

 Logo, a significação da palavra não existe em si mesma como algo já dado, nem é única, lógica, abstrata, descontextualizada. A produção de conhecimento sobre o mundo pela criança – enquanto processo mediado pelo outro e pela linguagem – não pode, então, ser coerentemente reduzida à sua dimensão lógico-racional. Como a própria linguagem, esta produção parece se fazer em “um equilíbrio dinâmico entre os ideais da matemática e a harmonia da imaginação”.


Conhecimento e linguagem: o lugar da imaginação

 É por isso que acreditamos que o estudo da tensão entre a racionalidade abstrata e a imaginação, apontada por Wertsch, pode produzir bons frutos no que diz respeito à compreensão dos processos de desenvolvimento cognitivo, em especial se considerarmos que, além da questão – que vimos abordando até aqui - dos modos de funcionamento da linguagem e dos processos de significação, tal tensão implica as concepções de Vygotsky sobre o lugar da imaginação no funcionamento psicológico humano e nos processos de elaboração de conhecimento.

A este respeito, é interessante lembrar que, no âmbito da psicologia do desenvolvimento, é freqüente a compreensão de que o pensar humano e o conhecimento racional da realidade tornam-se possíveis com o advento da capacidade de simbolização. Por sua vez, esta capacidade é, via de regra, relacionada a atividades que envolvem a imaginação. É o caso de Piaget, de Wallon e do próprio Vygotsky, que atribuem à imitação, ao jogo e ao simulacro e à brincadeira infantil, respectivamente, papéis essenciais na origem do pensamento lógico-conceitual. De modo geral, a imaginação é, neste campo, compreendida como a capacidade de produzir imagens mentais. Estas são a simples reprodução (ou o prolongamento) de percepções e sensações na ausência dos objetos que as provocaram (Piaget, 1989) ou, então, resultantes de um desdobramento entre o objeto e aquilo que se tornou seu sinal (Wallon, 1979). No caso de Vygotsky (1984), os processos imaginários envolvidos na brincadeira infantil são os que permitem à criança libertar-se das restrições perceptuais e situacionais.

A imaginação pode, assim, ser pensada como algo que mantém uma relação direta com a percepção ou, então, como emancipação do mundo sensível (Bernis, 1987). Aparece aqui uma “ambigüidade da função imaginativa” (op. cit., p. 9) que é encontrada de forma persistente nos diferentes sistemas filosóficos, conforme as posições que estes atribuirão à imaginação na formação do conhecimento. De qualquer modo, as relações entre o percebido, o racional e o imaginário são constantemente retomadas, quando se discute o problema da imaginação. Essas relações têm sido abordadas de modos diferentes, no decorrer da história da filosofia e da psicologia: ora a imaginação – enquanto reprodução do conteúdo da realidade sensível – é colocada, como intermediária entre sensação e concepção, a serviço da razão; outras vezes, distancia-se da razão, ao criar simulacros e ilusões, induzindo ao erro; ou, então, é aproximada das paixões e, como tal, deve ser submetida ao controle da razão; ora, ainda, é tomada como um talento da própria razão, ou – de maneira oposta - como uma capacidade que funda uma racionalidade encontrada não na abstração, mas na concretude das experiências humanas.

Em “La Imaginacion y el Arte en la Infancia” (VYGOTSKY, 1987a), a imaginação aparece como uma atividade que combina e cria, que assim como a memória – atividade reprodutora e de conservação da experiência passada – pode ser explicada pela plasticidade da nossa substância nervosa, pela sua capacidade de adaptar-se e conservar as marcas de suas modificações. Esta concepção de que a possibilidade de re-combinar fatos, impressões, imagens já vividos é o que caracteriza a imaginação e sua capacidade criadora, reaparece em outros momentos da produção de Vygotsky (1987b, 1994). Mas a sua idéia de imaginação incorpora também o distanciamento do imediatamente percebido e a possibilidade de resgate de imagens do anteriormente percebido: é a imagem, como cópia mais ou menos fiel do real, que serve de base para essa atividade que combina e cria.

É fundamental, no entanto, destacar que a imaginação, enquanto atividade que re-elabora, re-combina, dissocia e re-associa elementos, parece acabar presa à razão, ao pensamento conceitual, quando Vygotsky (1994, p. 269) postula que:

... Imaginação e criatividade estão ligadas a uma livre re-elaboração de vários elementos da experiência, livremente combinados, e que, como precondição, sem falta, requer o nível de liberdade interior de pensamento, ação e cognição que apenas quem tem dominado o pensamento conceitual pode alcançar.

Mas para avançarmos nossa compreensão das questões em pauta, é preciso, ainda, considerar que essa é uma visão parcial da imaginação tal como Vygotsky a concebe. Se tomarmos como referência suas formulações sobre a brincadeira da criança (1984), sobre a reação estética (1972) e sobre o desenvolvimento da imaginação na infância (1987b), encontraremos outros aspectos importantes para a compreensão de seu conceito de imaginação e de suas relações com a cognição. Para Vygotsky, há uma contradição inerente ao problema dessas relações: nenhuma cognição acurada da realidade é possível sem um certo elemento de imaginação e, por outro lado, os processos de criação artística ou de invenção demandam a participação tanto da imaginação quanto do pensamento “realista” - “os dois agem como uma unidade” (VYGOTSKY, 1987b, p.349). No entanto, não é possível identificar imaginação e pensamento sobre a realidade, negligenciando tudo aquilo que os opõem.

O aspecto essencial da imaginação é que a consciência afasta-se da realidade. A imaginação é uma atividade da consciência comparativamente autônoma, na qual há um distanciamento de qualquer cognição imediata da realidade... Em níveis avançados no desenvolvimento do pensamento, nós encontramos imagens que não são encontradas de forma completa na realidade... Uma penetração mais profunda da realidade demanda que a consciência alcance uma relação mais livre com os elementos da realidade, que a consciência saia dos aspectos aparentes e externos da realidade que são dados diretamente à percepção (VYGOTSKY, 1987b, p. 349).


Assim, a imaginação é compreendida como uma forma especificamente humana de atividade consciente que, enquanto base de toda atividade criadora, manifesta-se em todos os aspectos da vida cultural, possibilitando a criação artística, científica e técnica (VYGOTSKY, 1987a). Assim, todo o mundo da cultura é concebido como produto da imaginação e da criação humana. Ao possibilitar a reordenação dos elementos extraídos da realidade, organizando-os de maneiras novas, a imaginação não se caracteriza como uma atividade oposta àquela de domínio do mundo exterior, sendo ambas de natureza fundamentalmente social. Esta noção aparece claramente em sua concepção sobre a brincadeira infantil (VYGOTSKY, 1984), segundo a qual, ao criar uma situação imaginária, a criança também elabora seu conhecimento sobre o mundo físico e social.

No início do desenvolvimento do brinquedo, a situação imaginária é muito próxima da situação real, “é mais a memória em ação do que uma situação imaginária nova” (VYGOTSKY, 1984, p.117). Além disso, a atividade imaginária da criança pequena é ainda dependente de objetos concretos e das ações que estes objetos permitem. Na sua brincadeira, não é qualquer coisa que pode transformar-se em outra; é preciso que o objeto seja adequado ao gesto que o transformará. Assim, diz Vygotsky (op. cit., p.112), “devido a essa falta de substituição livre, o brinquedo, e não a simbolização, é a atividade da criança”. Gradualmente, no entanto, a fala passa a ocupar o papel inicialmente desempenhado pelo gesto e o simbolismo da brincadeira passa a se constituir com base nela.

Embora superficialmente a brincadeira se assemelhe muito pouco às formas de pensamento e comportamento a que conduz, para Vygotsky (op. cit., p.118), “a criação de uma situação imaginária pode ser considerada como um meio de desenvolver o pensamento abstrato”, uma vez que abre, para a criança, a possibilidade de agir independentemente da situação perceptual imediata e de operar – graças às transformações de objetos e ações e aos papéis que ela desempenha – no campo das significações. Para ele, a imaginação surge lenta e gradualmente, evoluindo de formas simples e elementares para outras mais complexas. Em cada fase dessa evolução, a imaginação adquire formas próprias de expressão, não se separando de outras formas de atividade humana e, em especial, permanecendo numa relação de estreita dependência da experiência acumulada.

É na brincadeira que, pela primeira vez no desenvolvimento da criança, os objetos perdem sua força determinadora e “é alcançada uma condição em que a criança começa a agir independentemente daquilo que vê” (Vygotsky, 1984, p.110). É através dos gestos e da linguagem que a significação da situação imaginária se produz. Ou melhor, a própria situação imaginária ganha forma quando um gesto ou uma palavra transforma um objeto em outro, uma ação em outra, produzindo novos sentidos. Ou ainda, é pela palavra que a criança assume seu lugar, em relação ao outro, dando forma à situação imaginária.

A este respeito, é interessante lembrar que Vygotsky se reporta, em diferentes momentos de sua discussão sobre a imaginação (1984, 1987b, 1994), a estudos sobre a afasia que demonstraram que certos pacientes eram incapazes de agir independentemente da situação imediata (e dos estímulos sensoriais) e de repetir frases que não correspondessem à realidade. Para ele, isto seria uma evidência de que a liberdade em relação ao contexto imediato e o desligamento das significações em relação aos objetos, que se encontra nas crianças, a partir de uma certa idade, e nos adultos, é resultado de um longo processo de desenvolvimento.

No entanto, é importante destacar que, em textos diferentes, Vygotsky dá às suas explicações sobre os resultados dos estudos da afasia nuances diferentes, que têm profundas implicações para a reflexão que vimos desenvolvendo. Num deles (Vygotsky, 1994), sobre a imaginação na adolescência, publicado pela primeira vez na URSS em 1931, ele destaca – como já vimos - o papel do desenvolvimento conceitual no desenvolvimento da imaginação. Em outro (1987b), uma conferência realizada em 1932 e publicada pela primeira vez apenas em 1960, o centro de sua argumentação é o desenvolvimento da linguagem. Revela-se, assim, uma certa duplicidade no tratamento dado à imaginação que, num momento, é entendida como atividade que re-elabora, em uma nova imagem, impressões da realidade imediata, numa espécie de generalização que, como tal, acaba submetida aos poderes do pensamento conceitual abstrato. Em outro, a imaginação aparece como distanciamento da realidade, como produção de imagens que não existem na realidade, ou seja, como criação, possibilitada graças ao poder da linguagem que nos liberta do imediato, do aqui-e-agora dos sentidos e das percepções.

Mas a criação, embora pressuponha a liberdade em relação ao já dado, não pode ser totalmente explicada por essa liberdade. Deste modo, se Vygotsky indica uma relação entre imaginação, como criação, e linguagem, esta relação não nos parece suficientemente explorada, explicitada, em suas formulações. É preciso, então, que busquemos em suas concepções sobre a linguagem e a significação, a possibilidade de atribuir à linguagem, além do poder de distanciamento do imediatamente percebido, um caráter de criação, de produção, para que possamos redimensionar as questões relacionadas à imaginação e à elaboração de conhecimento pela criança.

Como vimos, a significação para Vygotsky não pode ser reduzida à sua dimensão lógica: “o significado não coincide com o significado lógico (o desprovido de sentido tem significado)”. Embora a palavra sempre generalize, sua significação não se completa na generalização. Aliás, talvez nem sequer possamos falar em “completude” da significação da palavra, já que esta se apresenta como aberta ao contexto das interlocuções, ao jogo das motivações, dos desejos, das tendências e posições dos interlocutores. Vygotsky se pergunta:

O que é que move os significados, o que determina seu desenvolvimento? ‘A cooperação entre consciências’. O processo de alteridade da consciência (1996, p. 187).


O significado é móvel, aberto, incompleto e sua significação se constitui, se transforma e só pode ser explicada pela/na interlocução. A questão da significação se resolve no falar, atividade dos homens com e na linguagem, o que coloca a possibilidade de compreendê-la como produção. A linguagem, enquanto produto histórico e atividade humana, reveste-se, assim, do caráter de criação, de produção, que procurávamos encontrar na concepção vygotskiana.

Da mesma forma, o homem, para Vygotsky (2000) é o homem produtor. Produtor das condições de sua existência, das relações sociais, da história e da cultura. Produtor de sistemas simbólicos, de linguagem, de signos e de sentido. Produtor de si mesmo, na exata medida em que é também produto das condições que cria. Ao propor, no manuscrito de 1929, uma psicologia concreta do homem, ele defende a idéia de que o homem constrói a si próprio, abalando – em nosso modo de ver - qualquer pretensão de atribuir um telos ao desenvolvimento humano.

O mais básico consiste em que a pessoa não somente se desenvolve, mas também constrói a si. Construtivismo. Mas “contra” o intelectualismo (compare construção artística) e o mecanicismo (compare construção semântica) (Vygotsky, 2000, p. 33).


Em que pese o fato do texto citado não ser suficientemente explícito, podemos pensar nessa construção “artística e semântica” como algo que se faz no campo do simbólico e do imaginário, como nos aponta Pino (2000, p. 8):


Ancorado em uma concepção materialista da história e armado de um modo de pensar dialético, Vygotsky descobre no Homo o demiurgo de um mundo novo. Com efeito, a visão do homem que ele apresenta nos seus escritos é a de um ser que, emergindo da matéria e transpondo os seus limites no campo do imaginário e do simbólico, torna-se construtor do mundo e de si mesmo. Eqüidistante tanto de uma visão idealista quanto de uma visão materialista mecanicista, o homem que Vygotsky nos apresenta é um ser concreto que, criando suas próprias condições de existência, faz-se na história ao mesmo tempo que faz essa história.


É esta centralidade do simbólico e do imaginário que abre possibilidades interessantes para repensar as questões da elaboração de conhecimento e do telos do desenvolvimento cognitivo, uma vez que não permite que elas sejam reduzidas à perspectiva da lógica e da racionalidade abstrata. É por isso que, num olhar vygotskiano, parece-nos possível atribuir à imaginação um papel explicativo dos processos de conhecimento do mundo pela criança e re-elaborar suas relações com a racionalidade.


Em conclusão


Podemos dizer que o problema das relações entre razão e imaginação talvez seja tão antigo quanto o pensamento do homem sobre si próprio. As tentativas de enfrentamento dessas questões, principalmente na filosofia, mas também na psicologia, na psicanálise, nos estudos literários, etc. têm sido muitas e variadas, desenhando um vasto cenário, no qual as indagações, reflexões e argumentos desenvolvidos neste ensaio se inserem de modo muito modesto.

Procuramos aqui enfrentar essa problemática a partir das concepções sobre o desenvolvimento cognitivo, numa perspectiva histórico-cultural, levantando argumentos – no interior da própria teoria de Vygotsky – que possibilitam repensar a questão da racionalidade e da imaginação no desenvolvimento infantil. Tentamos vasculhar, parafraseando Vygotsky (1996), “no interior” e “em extensão e profundidade”, a lógica racional que predomina e que enreda, em muitos momentos, a visão de desenvolvimento e de conhecimento sobre o mundo, que se produziu no contexto de sua teoria. Nesta tentativa, puxamos alguns fios, tecidos na própria teoria vygotskiana, que começam a des-enredar as malhas da racionalidade, clareando outros caminhos.

Assim é que a visão de significação presente em Vygotsky foi retomada, no intuito de evidenciarmos o lugar atribuído à linguagem na produção de conhecimento e na atividade da imaginação e os seus modos de funcionamento, suas não-coincidências (entre pensamento e linguagem, sentido e significado, palavra e significação, etc.), seu caráter produtivo/criativo que permeiam as relações entre o homem e o mundo, alçando-as a uma dimensão simbólica e imaginária, que inviabiliza qualquer redução do conhecimento à lógica. Diríamos ainda que inviabiliza, dentro desta perspectiva teórica, qualquer possibilidade de, admitido um lugar à imaginação no processo de conhecimento, submetê-los – o conhecimento e a imaginação – ao predomínio da racionalidade.

É a visão do homem produtor (de sua existência material, de signos, de imagens e de sentidos) que permite articular esta argumentação que rompe com uma visão teleológica do desenvolvimento cognitivo. Afinal, este é sempre construção, melhor dizendo, criação: “artística e semântica”, de novas determinações que não se colocam antecipadamente. O que o desenvolvimento produzirá, a cada vez, é determinado e determina as formas que, num dado momento, os homens se deram para viver e interagir.  Neste processo de desenvolvimento, o conhecimento do mundo pela criança é inseparável de sua dimensão imaginária.



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