A
PESSOA NEGRA NO LIVRO DIDÁTICO
SOUZA, Vera Lúcia Pereira de.
Visando colaborar para a transformação a formação de
uma escola voltada para a diversidade cultural pronta a sagrar as diferenças raciais,
tomando como tema de partida o livro didático, tendo em vista que o mesmo
desempenha intensa influência no desenvolvimento do aluno e do cidadão
brasileiro, esta atividade apresenta análises de alguns livros didáticos de 5ª
a 8ª series, da disciplina Língua Portuguesa, adotados por escolas da rede
pública do Estado do Paraná, acatados pelo Ministério da Educação e Cultura,
por meio do Plano Nacional de Livro Didático.
Para avaliar os livros didáticos, com a intenção de
observar e descrever a presença da pessoa negra e o jeito pelo qual vem sendo
apresentado, escolhi duas coletâneas de circulação expostas:
- A palavra é português, das autoras Graça Proença
e Regina Horta, Editora Ática;
- Leitura do mundo, das autoras Norma Discini
e Lúcia Teixeira, Editora do Brasil.
São
adotados como instrumentos de análise os documentos e as ilustrações presentes
nas coletâneas, focalizando as circunstâncias atribuídas e o ambiente sociocultural,
bem como a forma pela qual o segmento separado aparece ilustrado.
A
coletânea “A palavra é português” é
composta por 12 lições em cada livro, de cada série, com a apresentação de
assuntos variados, repartidos em 04 unidades. Já, a coletânea “Leitura do mundo” é composta
por 09 unidades em cada série, com uma variedade de assuntos. Cada unidade é
constituída por 02 a 03 textos, acompanhados por ‘debates’ e ‘estudo de
gramática’.
Na
coletânea “A palavra é português”,
o número de lições apresentado é de 12 por série; verificando-se o aspecto
textual, averiguou-se que entre elas a presença da pessoa negra, na 7ª
série, foi de total omissão, enquanto nas demais o mesmo surge somente em 02
lições, que descrevem os seguintes assuntos: ‘entre amigos’, ‘histórias que o
povo conta’, ‘a palavra como matéria-prima da literatura’, ‘conflitos’.
A temática ‘conflitos’
conduz o leitor a uma atitude preconceituosa, estereotipando a pessoa negra
como o ocasionador de desordens e difusor de desavença. Na coleção “A palavra é português”,
8ª série, na lição 04, página 71, o texto Domingo no parque, de Gilberto Gil, na figura
empregada como pré-leitura ao texto, mostra Juliana, uma personagem mencionada
e presente na letra de música como o agente principal da desordem, desenhada
como uma moça negra, ocasionadora de uma pretensa conflito entre dois amigos: “Mas
aquela tarde, que ele pretendia tranquila, lhe reserva um grande conflito”.
A representação de uma moça negra, amável, alegre, entre dois moços brancos,
sendo um deles com expressão aborrecida, leva à provável comprovação de que a
moça é a ocasionadora da confusão. Por que o ilustrador do livro didático não
apresentou essa personalidade como uma moça branca, amarela, parda, e assim por
diante? É, na verdade, o estereótipo de que pessoa negra é parecida com
desordem e selvageria. O texto Domingo
no Parque não apresenta nenhuma particularidade de que
Juliana seja uma pessoa negra, ainda assim, ela é retratada como pessoa negra e
apesar de forma integralmente caricatural.
Outro
desenho em que se apresenta a pessoa negra surge na coletânea “A palavra é português”,
1998, 5ª série, página 56, na lição nº 04, texto “A aposta”, em que aparece a figura de uma senhora negra
de tecido na cabeça, esboçada de maneira caricatural, distinguindo um
estereotipo social, tendo em vista que as senhoras negras, nas raras vezes que
aparecem nos livros didáticos, são apresentadas com características de ajudante
doméstica, como ocorre no exemplo mencionado.
A
personagem nomeada Dona Durvalina tem nove filhos, de acordo com o texto, os
mesmos surgem ilustrados ao seu redor, calçando chinelos e roupas consertados,
assinalando inferioridade; ao retratar a pessoa negra desta forma, remete-se à
sua associação como um componente da sociedade que vive continuamente num
ambiente social desamparado. Por outro lado, nota-se que o senhor branco
ilustrado surge com vestes sem remendos, camisa por dentro da calça, cinto,
caracterizando uma figura aparentemente mais apresentável, com um grau
social de classe média, com característica de funcionário público.
Outra
aparição da presença da discriminação a pessoa negra, na coletânea “A palavra é português”,
(5ª série, página 45) surge por meio da conversação entre um garoto branco e um
garoto negro, em que aparece a frase: “Este
é Tiziu!”. O substantivo Tiziu se menciona ao garoto negro, como
designação própria, segundo os esclarecimentos do livro didático. De acordo com
o Dicionário Aurélio (1999), o termo Tiziu
corresponde a uma ave passeriforme, cujo macho é preto–azulado.
Deste
modo, é possível notar que as autoras e o ilustrador do livro didático
constituem uma semelhança entre o garoto negro e a ave, ao invés de lhe dar um
nome como, João, André, e assim por diante.
Salienta-se
que as formas como o desenho e o apontamento da norma de escrita do substantivo
próprio são empregadas deixa evidente que o menino negro foi literalmente
empregado como uma “coisa” que convém de referência à outra. Isto manifesta ao
se apreender a designação que é dada a substantivo: “Tiziu: nome de um ser da espécie
‘pessoa’”. O exemplo usado poderia muito bem ser empregado com o
menino branco, que igualmente tem um nome diferente “Socó”. Por que ele
não foi usado como citação? Por que o nome do menino branco não foi denominado
pelas autoras como “Socó: nome de um ser da espécie ‘pessoa’”? Permanece
proeminente que o segregacionismo assinalado determina que, no exemplo
apresentado, “Tiziu” é uma pessoa, como se a pessoa negra não o fosse. Esses e
outros exemplares são comuns nos livros didáticos, segundo explicado em
Menegassi (2004).
O
termo usado pelas autoras, para indicar o garoto negro, contribui para a
proliferação do preconceito, pois permite a comparação da pessoa negra a um animal-pássaro cujas penas ou
penugens são pretos, provocando em alunos
pertencentes à mesma etnia uma baixa autoestima, permitindo, ainda, que venham
a ser chamados de tal forma pelos companheiros em sala de aula, uma vez que,
para os alunos pertencentes a outras etnias, o fato de chamar o companheiro
negro por apelidos é uma ação natural na sociedade brasileira, sendo um
atitude adquirida em casa por meio da própria família, especificando o
preconceito existente na sociedade.
Perante
as análises realizadas da coletânea “A
palavra é português”, ressalta-se que as autoras, bem como o
ilustrador do livro didático, retratam o segmento a pessoa negra e
especialmente a mulher negra de forma integralmente caricatural e
estereotipada. Esta representação alterada da mulher negra colabora para a
comunicação da discriminação na sociedade, o que danifica muito a autoestima e
a valorização dessa camada da sociedade.
A outra coletânea avaliada é “Leitura do mundo”, cujos conteúdos são repartidos em 09
unidades por cada série, donde se averiguou a apresentação da pessoa negra em
todas as séries avaliadas, diferentemente da anterior, que se reduzia a algumas
apenas. Por demanda de espaço, aqui, demonstra-se, a respeito da temática
debatida, a característica mais proeminente na coletânea. O que chama a atenção
na coletânea é a similaridade nas colorações de cores usadas para simular
a pessoa negra, em relação às tonalidades utilizadas para ilustrar,
igualmente, alguns animais. Percebe-se com facilidade esta similaridade de
colorações ao analisar o desenho da coletânea
na 5ª série, página 143, em que surge uma pessoa negra e um
animal, mais exatamente um cachorro, ambos com a mesma cor, provocando certos
constrangimentos em alunos pertencentes à etnia. É importante observar
que as tonalidades usadas para desenhar as demais etnias presentes na coletânea,
igualmente, foram avaliadas, todavia não foi localizada nenhuma similaridade
com tonalidades usadas para desenhar animais, como no
episódio assinalado. Seguramente que essa demanda pode ser gráfica ou mera
casualidade, contudo, para esta análise, ela se faz presente e manifesto. Tal
problemática pode naturalmente embananar o leitor, numa ilusão de tonalidades,
estabelecendo uma afinidade entre a pessoa negra e os animais desenhados na
obra.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Todas
as coletâneas avaliadas merecem um melhor cuidado ao abordar aspectos de
pluralidade cultural, todavia podem ser trabalhadas em sala de aula, desde que
o professor dirija seus alunos a uma leitura mais crítica e observadora da
realidade da pessoa negra na história do Brasil, avaliando-se o passado, o
presente e o vindouro do país.
As
apreciações anotadas asseguram a apresentação de formas de preconceito e
estereótipos presentes de forma subentendida, até mesmo explícita, no livro
didático de Português, o que confirma uma ausência de preocupação com a
pluralidade cultural existente no Brasil.
Segundo
Crochik (1997 p.145), “a questão do preconceito deve ser diretamente discutida,
procurando o professor esclarecer a falsidade de seu conteúdo”, isto é, o
professor precisa tentar evidenciar ao aluno que o livro didático não é senhor
da verdade incondicional, e fazer com que ele esteja sempre alerta, sendo
crítico, ao se encontrar com circunstâncias discriminatórias. Na realidade,
compete ao professor expor ao aluno o preconceito e a discriminação assinalados
pelos autores dos livros. Esta atitude, além de despertar o discernimento
crítico no aluno, desenvolve uma série de táticas de leitura eficazes no
desenvolvimento do aluno leitor.
Ainda
que o Ministério da Educação e Cultura tenha adotado ações para aprimorar o
controle dos livros didáticos a serem distribuídos para as escolas públicas,
com a finalidade de impedir a distribuição de obras que contenham reproduções
negativas em relação a pessoa negra, ainda não se acha, com facilidade, livros
didáticos que abordem o auxílio desta etnia na edificação do país, incluindo
aspectos positivos da história da pessoa negra no Brasil.
A
despeito das propostas muito bem apresentadas nos assuntos de Pluralidade Cultural e Temas Éticos, presente
nos Parâmetros Curriculares Nacionais é grande a possibilidade de que muitos
professores não aproveitem o que esta sendo indicado, pois muitas vezes esses
mesmos professores, que são responsáveis pelo desenvolvimento de cidadãos
críticos, foram vítimas de uma educação preconceituosa e não receberam
instruções apropriadas para trabalhar em sala de aula a heterogeneidade
cultural, bem como a discriminação racial. Assim, a saída seria promover um
ensino que aborde as demandas de pluralidade cultural, procurando uma escola
mais democrática, reconhecendo as diferenças culturais de cada um. Nessa
definição, é imprescindível, também, uma prudência particular ao livro didático
que chega à escola e igualmente à concepção do professor, como intercessor do
conhecimento e especialmente como formador de cidadãos.
Creio
que seja possível construir uma sociedade que abrande as ações preconceituosas,
já que o oposto é uma utopia, valorizando a diferença como um aspecto positivo à concepção social do aluno,
lembrando-se de que as diferenças são jeitos que adicionam para a transmissão
do conhecimento. Essa atitude pode ser muito bem desenvolvida na escola, por
meio do manuseio de livros didáticos que tratem o assunto aqui debatido com
mais propriedade e criticidade. Dessa forma, aprender a fazer uso de uma técnica
educativa que estima a heterogeneidade cultural e seja prudente a qualquer
forma de discriminação, progredindo nas discussões a respeito das diferenças
raciais, é o início do desenvolvimento de uma democracia racial, que até então,
só tem no papel e se demonstra altamente discriminatória nos presentes livros
didática brasileiros de língua materna.
Para concluir, retomam-se as expressões do guia Martin
Luther King: “Aprendemos a voar como os pássaros, e a nadar como os peixes,
mas não aprendemos a conviver como irmãos”, entendendo-se a precisão de
aprender a conviver com as diferenças, uma vez que só assim é possível promover
um ensino comprometido com a valorização do ser humano ao alcance de todos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Secretaria de Ensino
Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural e
Orientação Sexual, temas transversais, Volume 10. Brasília: SEF, 2000.
BRASIL.
Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
Representação de temas transversais e ética, Volume 08. Brasília: SEF,
2000.
CROCHIK, José
Leon. Preconceito: indivíduo e cultura. São Paulo: Robe,1997.
DISCINI,
Norma; TEIXEIRA, Lucia. Leitura do mundo. São Paulo:
Editora do Brasil, 1999.
FERREIRA,
Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
MENEGASSI, R. J.
A representação do negro no
livro didático brasileiro de língua materna. Revista Espaço
Acadêmico, n. 36, maio de 2004.
PROENÇA, Graça;
HORTA, Regina. A palavra é português. São Paulo: Ática, 1998.
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