domingo, 11 de maio de 2014

A PESSOA NEGRA NO LIVRO DIDÁTICO

A PESSOA NEGRA NO LIVRO DIDÁTICO

 SOUZA, Vera Lúcia Pereira de.

              Visando colaborar para a transformação a formação de uma escola voltada para a diversidade cultural pronta a sagrar as diferenças raciais, tomando como tema de partida o livro didático, tendo em vista que o mesmo desempenha intensa influência no desenvolvimento do aluno e do cidadão brasileiro, esta atividade apresenta análises de alguns livros didáticos de 5ª a 8ª series, da disciplina Língua Portuguesa, adotados por escolas da rede pública do Estado do Paraná, acatados pelo Ministério da Educação e Cultura, por meio do Plano Nacional de Livro Didático.

Para avaliar os livros didáticos, com a intenção de observar e descrever a presença da pessoa negra e o jeito pelo qual vem sendo apresentado, escolhi duas coletâneas de circulação expostas:
- A palavra é português, das autoras Graça Proença e Regina Horta, Editora Ática;
- Leitura do mundo, das autoras Norma Discini e Lúcia Teixeira, Editora do Brasil.

              São adotados como instrumentos de análise os documentos e as ilustrações presentes nas coletâneas, focalizando as circunstâncias atribuídas e o ambiente sociocultural, bem como a forma pela qual o segmento separado aparece ilustrado.

              A coletânea “A palavra é português” é composta por 12 lições em cada livro, de cada série, com a apresentação de assuntos variados, repartidos em 04 unidades. Já, a coletânea “Leitura do mundo” é composta por 09 unidades em cada série, com uma variedade de assuntos. Cada unidade é constituída por 02 a 03 textos, acompanhados por ‘debates’ e ‘estudo de gramática’.
              Na coletânea “A palavra é português”, o número de lições apresentado é de 12 por série; verificando-se o aspecto textual, averiguou-se que entre elas a presença da pessoa negra, na  7ª série, foi de total omissão, enquanto nas demais o mesmo surge somente em 02 lições, que descrevem os seguintes assuntos: ‘entre amigos’, ‘histórias que o povo conta’, ‘a palavra como matéria-prima da literatura’, ‘conflitos’.

              A temática ‘conflitos’ conduz o leitor a uma atitude preconceituosa, estereotipando a pessoa negra como o ocasionador de desordens e difusor de desavença. Na coleção “A palavra é português, 8ª série, na lição 04, página 71, o texto Domingo no parque, de Gilberto Gil, na figura empregada como pré-leitura ao texto, mostra Juliana, uma personagem mencionada e presente na letra de música como o agente principal da desordem, desenhada como uma moça negra, ocasionadora de uma pretensa conflito entre dois amigos: “Mas aquela tarde, que ele pretendia tranquila, lhe reserva um grande conflito”. A representação de uma moça negra, amável, alegre, entre dois moços brancos, sendo um deles com expressão aborrecida, leva à provável comprovação de que a moça é a ocasionadora da confusão. Por que o ilustrador do livro didático não apresentou essa personalidade como uma moça branca, amarela, parda, e assim por diante? É, na verdade, o estereótipo de que pessoa negra é parecida com desordem e selvageria. O texto Domingo no Parque não apresenta nenhuma particularidade de que Juliana seja uma pessoa negra, ainda assim, ela é retratada como pessoa negra e apesar de forma integralmente caricatural.

              Outro desenho em que se apresenta a pessoa negra surge na coletânea “A palavra é português, 1998, 5ª série, página 56, na lição nº 04, texto “A aposta, em que aparece a figura de uma senhora negra de tecido na cabeça, esboçada de maneira caricatural, distinguindo um estereotipo social, tendo em vista que as senhoras negras, nas raras vezes que aparecem nos livros didáticos, são apresentadas com características de ajudante doméstica, como ocorre no exemplo mencionado.
              A personagem nomeada Dona Durvalina tem nove filhos, de acordo com o texto, os mesmos surgem ilustrados ao seu redor, calçando chinelos e roupas consertados, assinalando inferioridade; ao retratar a pessoa negra desta forma, remete-se à sua associação como um componente da sociedade que vive continuamente num ambiente social desamparado. Por outro lado, nota-se que o senhor branco ilustrado surge com vestes sem remendos, camisa por dentro da calça, cinto, caracterizando uma figura aparentemente  mais apresentável, com um grau social de classe média, com característica de funcionário público.

              Outra aparição da presença da discriminação a pessoa negra, na coletânea “A palavra é português, (5ª série, página 45) surge por meio da conversação entre um garoto branco e um garoto negro, em que aparece a frase: “Este é Tiziu!”. O substantivo Tiziu se menciona ao garoto negro, como designação própria, segundo os esclarecimentos do livro didático. De acordo com o Dicionário Aurélio (1999), o termo Tiziu corresponde a uma ave passeriforme, cujo macho é preto–azulado.

              Deste modo, é possível notar que as autoras e o ilustrador do livro didático constituem uma semelhança entre o garoto negro e a ave, ao invés de lhe dar um nome como, João, André, e assim por diante.

              Salienta-se que as formas como o desenho e o apontamento da norma de escrita do substantivo próprio são empregadas deixa evidente que o menino negro foi literalmente empregado como uma “coisa” que convém de referência à outra. Isto manifesta ao se apreender a designação que é dada a substantivo: Tiziu: nome de um ser da espécie ‘pessoa’”. O exemplo usado poderia muito bem ser empregado com o menino branco, que igualmente tem um nome diferente “Socó”. Por que ele não foi usado como citação? Por que o nome do menino branco não foi denominado pelas autoras como “Socó: nome de um ser da espécie ‘pessoa’”? Permanece proeminente que o segregacionismo assinalado determina que, no exemplo apresentado, “Tiziu” é uma pessoa, como se a pessoa negra não o fosse. Esses e outros exemplares são comuns  nos livros didáticos, segundo explicado em Menegassi (2004).

              O termo usado pelas autoras, para indicar o garoto negro, contribui para a proliferação do preconceito, pois permite a comparação da pessoa negra a um animal-pássaro cujas penas ou penugens são pretos, provocando em alunos pertencentes à mesma etnia uma baixa autoestima, permitindo, ainda, que venham a ser chamados de tal forma pelos companheiros em sala de aula, uma vez que, para os alunos pertencentes a outras etnias, o fato de chamar o companheiro negro por apelidos é uma ação natural na sociedade brasileira, sendo um  atitude adquirida em casa por meio da própria família, especificando o preconceito existente na sociedade.

              Perante as análises realizadas da coletânea “A palavra é português”, ressalta-se que as autoras, bem como o ilustrador do livro didático, retratam o segmento a pessoa negra e especialmente a mulher negra de forma integralmente caricatural e estereotipada. Esta representação alterada da mulher negra colabora para a comunicação da discriminação na sociedade, o que danifica muito a autoestima e a valorização dessa camada da sociedade.

              A outra coletânea avaliada é “Leitura do mundo”, cujos  conteúdos são repartidos em 09 unidades por cada série, donde se averiguou a apresentação da pessoa negra em todas as séries avaliadas, diferentemente da anterior, que se reduzia a algumas apenas. Por demanda de espaço, aqui, demonstra-se, a respeito da temática debatida, a característica mais proeminente na coletânea. O que chama a atenção na coletânea é a  similaridade nas colorações de cores usadas para simular a pessoa  negra, em relação às tonalidades utilizadas para ilustrar, igualmente, alguns animais. Percebe-se com facilidade esta similaridade de colorações ao analisar o desenho da coletânea na  5ª série, página 143, em que surge uma pessoa negra e um animal, mais exatamente um cachorro, ambos com a mesma cor, provocando certos constrangimentos em alunos pertencentes à etnia.  É importante observar que as tonalidades usadas para desenhar as demais etnias presentes na coletânea, igualmente, foram avaliadas, todavia não foi localizada nenhuma similaridade com tonalidades usadas para desenhar animais, como no episódio assinalado. Seguramente que essa demanda pode ser gráfica ou mera casualidade, contudo, para esta análise, ela se faz presente e manifesto. Tal problemática pode naturalmente embananar o leitor, numa ilusão de tonalidades, estabelecendo uma afinidade entre a pessoa negra e os animais desenhados na obra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS


              Todas as coletâneas avaliadas merecem um melhor cuidado ao abordar aspectos de pluralidade cultural, todavia podem ser trabalhadas em sala de aula, desde que o professor dirija seus alunos a uma leitura mais crítica e observadora da realidade da pessoa negra na história do Brasil, avaliando-se o passado, o presente e o vindouro do país.

              As apreciações anotadas asseguram a apresentação de formas de preconceito e estereótipos presentes de forma subentendida, até mesmo explícita, no livro didático de Português, o que confirma uma ausência de preocupação com a pluralidade cultural existente no Brasil.
              Segundo Crochik (1997 p.145), “a questão do preconceito deve ser diretamente discutida, procurando o professor esclarecer a falsidade de seu conteúdo”, isto é, o professor precisa tentar evidenciar ao aluno que o livro didático não é senhor da verdade incondicional, e fazer com que ele esteja sempre alerta, sendo crítico, ao se encontrar com circunstâncias discriminatórias. Na realidade, compete ao professor expor ao aluno o preconceito e a discriminação assinalados pelos autores dos livros. Esta atitude, além de despertar o discernimento crítico no aluno, desenvolve uma série de táticas de leitura eficazes no desenvolvimento do aluno leitor.

              Ainda que o Ministério da Educação e Cultura tenha adotado ações para aprimorar o controle dos livros didáticos a serem distribuídos para as escolas públicas, com a finalidade de impedir a distribuição de obras que contenham reproduções negativas em relação a pessoa negra, ainda não se acha, com facilidade, livros didáticos que abordem o auxílio desta etnia na edificação do país, incluindo aspectos positivos da história da pessoa negra no Brasil.
              A despeito das propostas muito bem apresentadas nos assuntos de Pluralidade Cultural e Temas Éticos, presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais é grande a possibilidade de que muitos professores não aproveitem o que esta sendo indicado, pois muitas vezes esses mesmos professores, que são responsáveis pelo desenvolvimento de cidadãos críticos, foram vítimas de uma educação preconceituosa e não receberam instruções apropriadas para trabalhar em sala de aula a heterogeneidade cultural, bem como a discriminação racial. Assim, a saída seria promover um ensino que aborde as demandas de pluralidade cultural, procurando uma escola mais democrática, reconhecendo as diferenças culturais de cada um. Nessa definição, é imprescindível, também, uma prudência particular ao livro didático que chega à escola e igualmente à concepção do professor, como intercessor do conhecimento e especialmente como formador de cidadãos.
              Creio que seja possível construir uma sociedade que abrande as ações preconceituosas, já que o oposto é uma utopia, valorizando a diferença como um aspecto positivo à concepção social do aluno, lembrando-se de que as diferenças são jeitos que adicionam para a transmissão do conhecimento. Essa atitude pode ser muito bem desenvolvida na escola, por meio do manuseio de livros didáticos que tratem o assunto aqui debatido com mais propriedade e criticidade. Dessa forma, aprender a fazer uso de uma técnica educativa que estima a heterogeneidade cultural e seja prudente a qualquer forma de discriminação, progredindo nas discussões a respeito das diferenças raciais, é o início do desenvolvimento de uma democracia racial, que até então, só tem no papel e se demonstra altamente discriminatória nos presentes livros didática brasileiros de língua materna.

              Para concluir, retomam-se as expressões do guia Martin Luther King: “Aprendemos a voar como os pássaros, e a nadar como os peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos”, entendendo-se a precisão de aprender a conviver com as diferenças, uma vez que só assim é possível promover um ensino comprometido com a valorização do ser humano ao alcance de todos.

 

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural e Orientação Sexual, temas transversais, Volume 10. Brasília: SEF, 2000.

BRASIL. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Representação de temas transversais e ética, Volume 08. Brasília:  SEF, 2000.

CROCHIK, José Leon. Preconceito: indivíduo e cultura. São Paulo: Robe,1997.

DISCINI, Norma; TEIXEIRA, Lucia. Leitura do mundo. São Paulo: Editora do Brasil, 1999.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

MENEGASSI, R. J. A representação do negro no livro didático brasileiro de língua materna. Revista Espaço Acadêmico, n. 36, maio de 2004.

PROENÇA, Graça; HORTA, Regina. A palavra é português. São Paulo: Ática, 1998.






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